"Corpo, boneco, tecnologia e ancestralidade", Resenha crítica de Priscila Mendes para o Spectrolab
Convidamos a jornalista Priscila Mendes para escrever uma crítica sobre o espetáculo "Jantar".
Confira o texto a seguir:
O que difere a espécie humana dos outros animais? Aliás, o que difere a civilização dos selvagens?
O espetáculo Jantar, do coletivo de investigação em Artes Cênicas Spectrolab, é um convite para refletir sobre a relação entre o homem e a tecnologia, mas no off-line: antes de começar, a plateia é convocada a se abster de celulares, para vivenciar - com plena presença - o experimento cênico.
Um experimento arrebatador, que congrega as mais contemporâneas linguagens das artes cênicas e ainda dialoga com o audiovisual, criando significâncias exponenciais.
Rede, emaranhado, ninho. Nós.
Rede para embalar, rede para conectar, rede para aprisionar.
Lixo, rejeito. O que se rejeita?
Sem tanto spolier, convidando todos vocês a assistirem, é importante registrar a figura folclórica Capelobo, ser híbrido entre o humano e o tamanduá – e que, na montagem, aborda a perspectiva ‘lenda’ e ‘mito’. Na montagem, o ser encantado lida com a destruição humana, em razão da exploração de metais.
O que torna os humanos em humanos? O que tem valor? O que se busca?
Eu fiquei tensa. Ansiosa e atenta por cada movimento, cada fresta de luz, cada combinação sonora. Envolta no mistério, no limite entre o suspense e o fantástico.
Jantar é um banquete de sensações. Sem sequer uma palavra falada, o espetáculo convoca o olhar atento, instiga os ouvidos e o olfato, atiça o paladar e dá quase para tocar… Resultado de cenografia e figurinos minuciosos, iluminação e sonoplastia potentes e atuação irretocável. Imagético, onírico.
A espécie humana, após conquistar polegares opositores e o fogo, ampliou cada sentido com tecnologias. O controle remoto – controle de quê? – permitiu comandar equipamentos à distância... normalizou distâncias.
E assim surgiu o conflito homem versus máquina. Quem controla quem? Com a redução da atuação humana e o maior aparelhamento tecnológico, de qual inteligência estamos falando?
É importante destacar a perspectiva de gênero que Jantar traz. Quem trabalha fora? Como é trabalhar ‘dentro’? Quem se responsabiliza pelo filhote? É possível “coreografar” o revezamento entre o cuidado do filho com o trabalho remunerado?
Jantar é uma montagem que tem a assinatura do Spectrolab facilmente identificada. Corpo e boneco sendo um só. Corpo e suas expressões. Boneco vivo. E com o caminho que só o investigador Spectrolab é capaz: uma pesquisa a partir de resíduos eletrônicos. Só a arte é capaz de tornar coerente e sutil a combinação ‘lixo eletrônico’ e ‘lenda amazônica’.
Um espetáculo impactante, que exprime o melhor das artes cênicas da contemporaneidade, que apresenta resultados valiosos de interações internacionais e que é orgulhosamente mato-grossense.
Priscila Mendes é jornalista, ativista cultural e uma das maiores apoiadoras da arte mato-grossense.
Foto: Marcelo Sant'anna
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